31 de jul. de 2008

Marquês de Sade (trecho)

(Tela de Edvard Munch, "Vampire"-1893/1894)


"- Está no nosso próprio coração - prosseguiu Curval. - Uma vez degradado, uma vez aviltado pelos excessos, o homem obriga a sua alma a assumir uma espécie de conformação viciosa da qual coisa alguma o conseguirá arrancar. Em qualquer outro caso, a vergonha serviria de contrapeso aos vícios cuja prática o espírito aconselhasse; mas neste caso, nada disso é possível: foi apagado o primeiro sentimento, banido e expulso para bem longe, e daqui ao estado em que a vergonha e o rubor desaparecem, em que se ama aquilo que faz corar, é um passo. Tudo aquilo que numa alma diferentemente preparada podia afectar desagradavelmente metamorfoseia-se neste caso em prazer e, doravante, tudo o que possa reavivar o novo estado adoptado tem de ser sempre coisa voluptuosa.
- Mas para se chegar aí quanto se tem de caminhar no vício! - disse o bispo.
- Concordo - disse Curval. - Mas essa caminhada faz-se imperceptivelmente, é toda ela feita sobre flores; um excesso chama o outro, a sempre insaciável imaginação não demora a conduzir-nos ao termo da viagem e, como o percurso endureceu o coração, ao ser atingida a meta, esse coração, que em tempos possuiu alguma virtude, passa a não reconhecer nenhuma delas. Acostumado a coisas mais violentas, rejeita prontamente as primeiras impresões moles e sem doçura que até então o inebriavam e, como pressente que a infâmia e a desonra vão ser a sequência dos seus novos movimentos começa logo, para não ter de os temer, a familiarizar-se com eles. Mal os aflora ama-os, porque estão relacionados com a natureza das suas novas conquistas e jamais mudaráde parecer.
- Essa a razão por que a correcção é tão difícil - disse o bispo.
- Dizei antes impossível, meu amigo. Como é que as punições infligidas àquele a quem quereir corrigir poderiam convertê-lo, quando é certo que, apesar de certas privações, o estado de aviltamento característico em que, ao puni-lo, o colocais, lhe agrada e lhe apraz e o deleita, pois que folga dentro de si próprio, ao ver que foi tão longe que mereceu ser assim tratado?"1

Marquês de Sade (1740-1814)


1 SADE, Marquês de - Os Cento e Vinte Dias de Sodoma. 1ª edição. Lisboa: Antígona, 2000. ISBN 972-608-115-7. pg 363-364

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